terça-feira, 13 de abril de 2010


Na janela
caem gotas de tinta verde manchando minha visão do azul

quem sabe
romper as paredes da sala de aula
esgueirando-me pelo vidro aberto
equilibrada no parapeito

alçando um vôo
a esse braço de madeira viva que aponta eternamente o céu
largar o lápis, quem sabe, a mesa estéril,
 e tocar com minha pele humana mole a áspera casca de natureza que me olha

do lado de fora.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Hoje não se encontra na antiga casa muito mais que uns cacos. Era uma esquina suja, um murozinho cinza, um portãozinho capenga e a filharada, a netalhada espremida na varanda nas noites úmidas de verão, matando o tempo e alguns mosquitos. A minha vó gostava mesmo era de se sentar na soleira da porta, e dividia sua atenção entre a novela mexicana e o movimento da rua. Ela tinha uns óculos enormes, que usava enquanto falava ao telefone, anotando o resultado do Jogo do Bicho num bloquinho de papel.Adorava Coca-Cola e recheava o pão doce com mortadela.Juro que nunca vi ninguém comer pão doce e mortadela juntos e me pergunto se não criei essa lembrança, assim como outras que teimam em desafiar minha noção de realidade.
Sentada no sofá, eu sabia o lugar exato de um furo no tecido, que eu gostava de cutucar.Meus pezinhos nem alcançavam o chão, e o sofá quase me engolia. A casa toda era um grande castelo para mim, e o tapete da sala era ouvinte para minhas histórias.Minha vida se resumia no mais simples, era só viver, e pronto. 
Quando a doença agarrou minha avó e teimou em não soltar mais, todos saímos da velha casa.Trocamos a sala com cortinas de renda e aquele quadro com o desenho de um cavalo pelo quartinho de hóspedes lá de casa. Era uma cama com lençóis brancos, um criado mudo e um armário, e a tossezinha da minha avó durante a noite. Passei a acreditar mais concretamente na idéia de que um dia ela deixaria de existir, assim como acabavam de repente as novelas que ela assitia. E naquela época eu vivia cada um dos dias apreensivamente, aguardando a hora que teria de lidar com a não-presença dela.
Ela nunca mais conseguiu voltar para sua sala querida, nunca mais se sentou no sofá furado.
A casa está coberta de sujeira. Tem lixo no quintal, em toda parte. Tudo podre, comido, mastigado e vomitado pelo tempo, a pureza da casinha  ameaçada pela sujeira dos sapatos das mulheres que entraram lá, bagunçando as pequenas lembrancinhas que restavam em cada canto.
Voltar é revisitar uma lembrança boa com gosto de pesadelo que não acorda, e por isso, bato o pé e digo que não volto.
Trocarei a velha casa, grande demais para minha memória, pelos óculos enormes da minha avó, que, suaves, descansam em paz na gaveta do meu criado-mudo.