quinta-feira, 25 de março de 2010

O primeiro dia do outono
e dá para ver na minha rua
a calçada virou um rio
as flores boiando na água da chuva


e dá para ver na minha casa
os móveis todos no lugar
os fantasmas jogam baralho no porão

em cima daquela mesa uma flor nova

Não é só uma nova estação.

terça-feira, 23 de março de 2010

hoje o poema não é meu, mas de alguém que se descobriu meio poeta, hoje mesmo, no meio de uma aula chata.

Tudo ali
na minha frente
tão claro e evidentemente nu
sem máscara
sem mácula
na minha frente
Tudo ali

segunda-feira, 22 de março de 2010

Testa com testa
é só do que eu preciso para as próximas horas
gota a gota
pingam todos os minutos nessa chuvinha insistente
e eu quero que não cesse
eu quero que nunca pare

- Vai, mas vê se me volta logo.

Manifesto

Não ter nada:
talvez a solução.

Uns desprezíveis humanos
mesmo que nada possuam
têm a sua compaixão

e a minha moeda de ouro
mesmo que miúdo conto
encobre-te o meu coração.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Bandeiriando

Sentindo cair em mim
nenhuma lagrimazinha
cebola, filme triste, álbum
de fotografia
e nem uma lagriminha
mas a alma
- E que alma mais bobinha, meu Deus...-
se desfaz em soluço salgado
e escorre
em rio.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Reversos

I

Poesia se faz
da vontade de quebrar palavra
de comer e cuspir palavra
manchando o branco do papel.
De água
minha palavra desfaz
a fibra e a forma

só não tinge de carmim
a imaculada
alva
folha.
 
II
 
Poesia se faz
da vontade de juntar palavras
aleatoriamente no espaço
a ver se formam asas.
Costurar palavra,
tecer cada ponto
tramando um pano
ultra-planando.
 
Só não me alça do simples
(a intocada,
alta
asa) chão.
 
 
Livia Galeote e Tiago Bentivoglio
 
 
(ou seria o contrário?)

domingo, 14 de março de 2010

Não sei se o conheço há muito
ou se nada sei de você
que me revela
fotografia colorida letra nova em livro velho

Amassada página
dormiu num cesto
folha gasta esquecida no tempo

E foi preciso um forte vento
pra que fosse recolhida

E que você desfizesse os vincos com carinho de bom leitor
pois só como folha refeita
se lê o que carrego
em tinta preta.
Acordar cada canto
casto.
Animar cada palavra
muda.
Fazer com que esse fino traço corte carne mais funda.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Houve um tempo em que o meu maior medo era ser esquecida na escola. Descia as escadas correndo, arrastando minha mochila com rodinhas, e só conseguia desgrudar os olhos do portão quando via minha mãe.Nem a pipoca, nem o sorvete me consolavam, o maior medo era de que o porteiro fechasse a escola e eu tivesse que dormir sozinha no pátio.Criança tem dessas coisas, mesmo.
Só consegui superar meu medo quando passei a frequentar os ensaios do coral.
 Desprezado pelas outras crianças, que gostavam mesmo de jogar bola, o coral era dominado por todos os desajustados da escola. Havia um número bom de meninos que gostavam de cantar, e esses mereciam nosso respeito mais do que qualquer um, pois caprichavam nos seus agudos, e enfrentavam platéias em que estava contido igual número de pessoas que consideravam o coral  uma atividade para meninas. Lugar de menino é jogando bola, afinal.
Não lembro que circunstâncias me levaram a participar, só sei dizer que, quando me dei conta, já passava as noites de terça-feira num auditório que cheirava a mofo, com uma pasta recheada de letras de músicas debaixo do braço. Me apeguei à pastinha, e lembro que depois de um tempo, quando sentia falta dos ensaios, ficava com ela aberta no chão do quarto, cantando.
Posso dizer que não sabia cantar. A professora, Tia Nívia, demarcara meu lugar na última fila, e mesmo que eu fosse muito pequena para minha idade, ficava quase totalmente escondida atrás dos alunos altos.Eu até tinha consciência das minhas limitações musicais, e por isso, muitas vezes, quando sabia que não ia alcançar determinada nota eu apenas mexia os lábios sem emitir som algum.Era a minha maneira de dar licença aos outros, quando sabia que não seria capaz. Cantar no coral nos exige certa noção de coletividade, apesar de que no meu caso, era um bocado de timidez que me regia.
Tia Nívia era uma senhorinha já no auge da sua aposentadoria, morava numa rua atrás da escola, e se dedicava há anos ao coral. Acredito que ela tinha formação em Música, mas éramos todos crianças demais para pensar ou querer saber sobre isso. Ela cantava tudo muito agudo e muito afinadinho, e do piano, tocava cada nota com energia e se remexia toda no banquinho, acho que de emoção. Penteava os cabelos para trás, usava um cinto por cima da saia e casaquinho, e seu gosto para moda se estendia ao nosso uniforme. Mais do que as apresentações em si, o figurino sim gerava expectativa e comentários, Tia Nívia fazia questão de que usássemos as roupas que ela planejara, e esse era nosso maior medo antes de alguma apresentação. Eu mesma já passara pela fantasia de palhaço, de Papai Noel, e estudante colegial, com direito a suspensórios, saia de pregas e meias três-quartos.Quando os alunos, revoltados, exigiram o fim das fantasias, ela, muito contrariada, adotou um uniforme composto de terninho e gravata, que nos deixava parecendo aeromoças em miniatura. A verdade é que a roupa pouco importava, todos estavam lá por puro amor, e posso garantir tal fato, pois sei que é quase impossível reunir duas ou três crianças em uma sala se estas não quiserem ser reunidas.
Cresci ali, entre músicas e risadas, e  descobri o sabor de cada uma das canções que não conheceria por considerar "velhas". Hoje me pego ainda emocionada ao ouvir "O Caderno", do Toquinho, o que me leva de volta aos corredores coloridos da minha escola, onde tantas vezes eu me sentei num dos degraus da escada e imaginei as histórias que contei pra mim mesma, antes de dormir. Teria ficado na escola, não fosse a necessidade de crescer.
Se minha mãe tivesse me esquecido, teria dormido naqueles corredores, entre mapas e cartolinas.
Os mesmos corredores que eu aprendi a amar e deixei de temer.